sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Drummond e O Sorvete

Talvez por consumir muito sorvete nestes dias quentes, fui tomada por uma nostalgia do conto de Drummond que conheci ainda menina, e senti vontade de relê-lo e publicar parte dele aqui. Neste conto, o poeta relata como em 1916, na pequena cidade mineira onde nasceu, ele e o amigo Joel, aos 11 e 13 anos, respectivamente, experimentaram o "delicioso sorvete de abacaxi" anunciado pela confeitaria local:

"O garçom depositou cuidadosamente sobre a toalhinha alva dois copos cheios de água, dois guardanapos de papel com florezinhas pálidas e duas tacinhas de vidro contendo, cada uma delas, meia esfera de uma substância alva e brilhante. Crianças de cinco anos desprezarão minha narrativa, e já ouço um leitor maduro, que me interrompe:

'Afinal, este sujeito quer transformar o ato de tomar sorvete numa cena histórica?'

Leitor irritado, não é bem isso. Peço apenas que te debruces sobre esta mesa a cuja roda há dois meninos do mais longe sertão. Eles nunca haviam sentido na boca o frio de uma pedra de gelo, e, como todos os meninos de todos os países, se travavam conhecimento com uma coisa de que só conhecessem antes a representação gráfica ou oral, dela se aproximavam não raro atribuindo-lhe um valor mágico, às vezes divino, às vezes cruel, em desproporção com a realidade e mesmo fora dela; um valor independente da coisa e diretamente ligado a sugestões de som, cor, forma, calor, densidade, que as palavras despertam em nosso espírito maleável.

Como posso reconstituir agora tudo o que nós criáramos, para nosso próprio uso, em torno da palavra sorvete, representativa de uma espécie rara de refresco, que às pequenas cidades não era dado conhecer; e cruzada bruscamente com a nossa velha e querida palavra abacaxi, ambas como que envoltas, por uma astúcia do gerente da confeitaria, na seda fina e macia da palavra "delicioso"?

A carga de simpatia e sensualidade com que me atirei – nos atiramos – às meias esferas trazia talvez em si o germe da decepção que logo nos assaltou. O sorvete era detestável, de um frio doloroso, do qual se excluía toda lembrança de abacaxi, para só ficar a idéia de uma coisa ao mesmo tempo pétrea e frágil, agressiva aos dentes, e, mais para além deles, a uma região íntima do ser em que está o núcleo da personalidade, sua mais profunda capacidade de gozar e sofrer. Era uma dor universal o que ele espalhava, e tão rápida e difundida como se invadisse no mesmo segundo, por mil filamentos, toda a rede nervosa... Lágrimas subiram-me aos olhos. No rosto de Joel, também o sofrimento se desenhava.

Evidentemente, era impossível continuar com aquilo, e tínhamos de resolver no espaço de alguns instantes, perante o olhar talvez malicioso dos frequentadores, do garçom, do caixa, o problema de liquidar com o sorvete sem ser por via de ingestão, ao lado de outro problema, oh, tão mais penoso, o da transformação imediata do nosso lírico conceito de sorvete numa triste noção experimental, erma de toda satisfação física ou estética... Mas como fazer desaparecer um objeto de difícil transporte e conservação, num lugar público? Pergunta que os assassinos devem formular-se, fechados no quarto com o cadáver; os mais sinistros e engenhosos expedientes têm malogrado. Em certo sentido, nós nos sabíamos criminosos, porque, insisto, o homem do campo a sós com as complicações da cidade é sempre débil; éramos debilíssimos. E nada mais triste do que reparar na tranquilidade esmagadora com que os da cidade assistem à nossa angústia insolvável. 'Por que pediu sorvete? Se não ia gostar?! E por que não gostou? É admissível que alguém não goste de sorvete? Logo de abacaxi! Especialidade da casa!' O caixa saíra do trono para dizer-me isso com a mão direita coçando o queixo e o bigode... Olhava-me com desdém e reprovação. Não, não disse nada. Mas eu ouvia dentro de mim suas palavras, a vergonha que elas fariam derramar sobre minha família – o filho do Coronel Juca não gosta de sorvete de abacaxi: ele teve coragem de ir a uma confeitaria elegante, pedir um sorvete e estragá-lo: e minha boca doía com a lembrança daquele gelo ardente e cáustico.

Então reatacamos o sorvete, mas ele continuava intragável. A verdade é que, sem noção alguma de como ingeri-lo, nós pretendíamos absorvê-lo a dentadas, em grandes porções que levavam consigo o pânico de um motor de dentista. O céu da boca era um teto fulgurante de dor: e o pior é que, eu bem o sentia, essa dor era ridícula.

Renunciei antes de Joel à empreitada de amor-próprio; que o garçom e o caixa me matassem, mas não 'comeria' mais aquilo. Olhei firme para meu amigo, que, por ser de ânimo mais rude do que eu, ou por haver descoberto instintivamente a técnica de tomar sorvete sem dor, ou finalmente por temperamento de chefe, continuava levando a colher à boca, a meia bola de neve já solapada.

Joel percebeu meu desconforto sem apoiá-lo, e com um olhar peremptório baixou-me esta ordem, entre dentes:

– Acabe com isso se não quer ficar desmoralizado.

Era um pensamento, uma noção dos Mendonça, formada na educação burguesa de várias gerações, que ele ministrava a um membro de outra família não menos rica de princípios respeitáveis, os Caldeira Lemos. Uma reputação pode perder-se com a menor prova de fraqueza. Há um orgulho de família, de pessoa, que o indivíduo recebe no berço e tem que sustentar. Joel tirava seu comportamento, numa situação assim imprevista, do corpo de doutrina dos Mendonça, e me lembrava que eu devia fazer o mesmo.

Sucede que aquilo que nos é penoso fazer, por iniciativa própria, mas sabemos necessário, se torna fácil de executar quando um poder estranho no-lo determina. Todo o encanto do sorvete estava perdido. Mas restava um dever do sorvete a cumprir, um dever miserável. Refreando as lágrimas, o desapontamento, a dor que um filho de boa família não pode sentir em público, mastiguei as últimas porções daquela matéria atroz.

Joel olhou-me de novo, já agora aprobativo e cordial. Ele também sofrera bastante, mas a vida é um combate. O garçom aproximou-se. Joel pôs a mão no bolso, perguntou quanto era.

O dinheiro não chegava."

2 comentários:

Baixo Mamãe disse...

É lindo o conto, Nádia... Adorei!!!
Feliz Natal!!
Beta.

Nádia Lamas disse...

Feliz Natal e um excelente 2011 pra você também, Beta, pra toda a sua família - incluindo o mais novo membro dela!

bjs!