segunda-feira, 24 de maio de 2010

Sabores

Uma delícia esse texto da Fal Azevedo...

"Na década de setenta eu era uma menina que corria de calcinha pelo quintal e o mundo era cheio — muito mais do que hoje, lamento dizer — de som e fúria, de cores e cheiros, de sensações e, é claro, de sabores.

Sabores azedos e cotidianos como o das mexeriquinhas que comíamos — meu irmão Pedrão, e eu — das árvores e do limão-cravo, que saía direto do pé para a jarra de suco ou para a mesa, onde temperava a salada e o meu bife (essa mania de pôr limão em tudo me acompanha até hoje).

Sabores doces e derretidos, como o bolo-de-bolo da minha mãe (“Mãe, o bolo é de que?” “De bolo, oras!”), cortado em fatias grossas, envoltas em Manteiga Aviação — adoro aquelas latas, meu pai comprava no armazém do Seu João.

Sabores secretos e excitantes de bolinhos de chuva com canela e açúcar, delicioso segredo com o qual o cozinheiro (como era o nome dele, meu Deus?) aplacava a nossa fome quando voltávamos da equitação e as duas horas que nos separavam do jantar eram longas demais. Até hoje como esses bolinhos olhando em volta, atenta, esperando ser pega em flagrante a qualquer momento.

Sabores açucarados e ternos como o doce de laranja — laranjas inteiras, com casca — que minha mãe fazia, cujo caldo aplacava a tosse de fumante inveterado do meu avô Affonso.

Sabores aconchegantes, como a sopa de beterrabas, ou surpreendentes como os palitos de cenoura crua molhados no vinagre.

Sabores higienicamente comprometidos como os chicletes que meu tio Márcio comprava para mim no botequim e que se caíssem na calçada eu podia comer porque “Micróbio não come chiclé, Bi!”, e sabores — todos eles — maravilhosos e assépticos, preparados na imaculada e cirurgicamente esterilizada cozinha da minha avó Cida.

Das muitas fixações da minha vida, comida é a mais feliz delas — que o diga meu manequim 54 — e o que comer, quando comer, como preparar, são dúvidas cruciais, são meu Santo Graal e me encantam, ocupam e apaixonam.

Comida é das manifestações culturais mais importantes, é a mola propulsora de toda a civilização — e você pode apostar seu Big Mac nisso, baby. A identidade social que se revela ao escolhermos este ou aquele alimento, comido assim ou assado (sem trocadilho), aqui ou acolá, revela nossa estrutura de sociedade, nosso estilo de vida, nossa atitude (palavra batida, mas muito boa) diante do SER SOCIAL.

E todos nós, o publicitário no sushi-bar, a mulher muderna e suas saladinhas, o gordo que mama, com dor e culpa, aquele leite condensado na lata nas altas da madrugada, o cara que pega trem e ônibus para ir trabalhar e leva a marmita debaixo do braço, o bancário que come com ticket, a mãe que prepara a gelatina para o almoço de sábado e o sem-teto que come o que você jogou fora na lixeira do seu prédio, somos peças desse imenso mosaico que chamamos de sociedade e que também se desenha a partir destas informações.

O país em que vivemos, a sociedade na qual transitamos podem, devem e são também entendidos e analisados através do que comemos — e do que não comemos, claro.

O poeta Robert Frost disse que ninguém é impunemente.

Pois eu acho que ninguém come impunemente.

E isso é maravilhoso."

2 comentários:

Katita disse...

Belíssimo texto !
Toda civilização se "sustenta" pelo que "cultiva".
Torna-se conhecida pelo que "planta".
E certamente fará a "colheita" de bons frutos se a "terra" estiver "bem tratada".
Beijocas.

Nádia Lamas disse...

Beijos a minha amiga historiadora/antropóloga!